terça-feira, 19 de novembro de 2013

Venda de excrementos

    Uma varredura foi feita no céu, eliminaram-se nuvens, limpou-se o terreno. Não havia mais nada por perto, apenas pessoas e paisagens. A criatura visualizou o ápice da caixa do mundo: o manto inalcançável. Uma venda amarrou-se aos seus olhos, carregada pelo vento. A escuridão tomou-a, mas uma escuridão anil, o mais puro azul que constitui as cores primárias.
    O azul sem nuvens que obscurece a imaginação.
    A criatura foi presa em seu subconsciente, desesperada para saber o que ocorria ao seu redor, regurgitada da realidade. Criando situações, criando gráficos ao seu entorno.
    Subitamente raízes rasgaram o chão chicoteando a pele exposta da criatura. Soltaram-se as estruturas, desconstruiu-se as certezas. A criatura permaneceu vagando em seu abismo azul. O mundo decompunha-se em excrementos. Larvas de ureia expeliam seres encefálicos com corações de nitrato, pensamentos de restos.
    Puseram-na em um pau-de-arara sem que tocasse no habitat ignóbil. Pensou estar circundada pela vida, mas era a morte que rondava sua existência. Pensou em mudança, perguntou e não escutou a resposta.
    O som perdeu-se ao mergulhar no vácuo.
    Esmagaram-lhe a face, trucidaram sua garganta. Respirava e emitia sons como um invertebrado. Derretia-se aos avessos, não encontrando sua natureza; fugindo dela.
    Escorria pelo casco como vômito, ou como veneno - corroendo os sentimentos.
    Perdeu-se na solidão daquele mundo desgastado (tanto quanto a criatura). Os olhos enxergavam apenas uma imagem, um destino. As vendas nunca caíram-lhe da face e permaneceu, a criatura, espalhada ao chão, seus fluidos evaporando.
    A criatura ligou-se à terra, acomodou-se a ela, virou mesmo elemento.
    Transformou-se em uma criatura coprófila.
    Apenas criatura.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Planta de poste

   Um lampejo – próximo a isso. Qual nome dar a uma faísca que surge e esvai em milissegundos? O resultado de um desfibrilador defeituoso e um organismo fraco. Um estrondo no vácuo. Tão encantador quanto falso. A inexistência de algo. O nada. A indiferença em seu fulgor absoluto.
   Uma planta nasceu em um poste. Planta-concreto, planta-vazio. Crescerá da forma que cresce a indiferença, murchará da mesma forma... Formas que murcham. Não fará nada, apenas permanecerá. Permanecerá com fios desencapados a chicoteá-la, a reanimar com choques brutos, porém doces para seu estado inerte.
   Uma planta-concreto não tem alma, tem ar, pois o ar torna sua carcaça fina; a torna barro. E barro desmancha, barro endurece.
   Então uma nova faísca, o retorno do orgânico. O desfibrilador suando, uma moeda girando, o ar se expandindo.
   Crac. Foi o som do âmago. Algo reluziu. Uma corrente conseguiu se alojar no vazio, forneceu calor e realizou um curto. Forte rajada propagou-se no antigo oco e não destruiu as paredes do pseudo barro. Não, o ar englobou a planta-concreto que tossiu.
   A tosse dos sentidos.
   Englobou uma planta morta que havia transferido a memória para o núcleo. Único bem. O sentimento de nada atormenta e massacra.
   Havia um palito e havia um cordão.
   O cordão enlaçou o ar, o palito torturou a bolha e julgou-a a criar resistência.
   Resistência, nada e indiferença.
   Sequer restou a coçada de costas para a planta sem membros.