Porque era dia de chuva também era dia de fumaça.
Acordaram todos tossindo, com suas baforadas fantasmagóricas. Mas era dia de chuva e o engasgo foi esquecido para vir o momento de contemplação.
Há dias que um ovo cozido com sua gema exposta queimava no alto e queimava aqui em baixo. E quando você acorda com seu quarto mais úmido que de costume e com aquela sensação que só a chuva pode proporcionar, esquece de dar seus xingamentos matinais ao calor e sorri com um gosto molhado. Então era dia de abrir a janela, de ler, escrever, assistir filmes ou simplesmente permanecer na cama, com os olhos vidrados no infinito.
A chuva volta a cair, você se senta na janela e aproveita aquele vento carregado de gotículas d'água, a serenata começa quando o músico distensiona a 6ª corda do violão - apenas isso, sem acordes - então escuta-se reverberando o som grave do trovões; dançando nas nuvens como bailarinos de luz, os relâmpagos contorcem-se pelo ar com suavidade e selvageria. Então o espetáculo acaba, os aplausos que sucedem são as pancadas ocas que a chuva provoca no cimento do asfalto. Muitos ainda estão petrificados pela apresentação majestosa, com milhões de ideias na cabeça , aturdidos e ao mesmo tempo plenos.
O frenesi de depois do espetáculo, onde os artistas recebem flores, cumprimentos e elogios vai cessando aos poucos. Você, ainda em sua janela, estende os braços e forma concha com ambas as mãos, unindo-as pelos pulsos tentando captar a vibração dos bailarinos luminosos. Mas desiste, tamanha é sua pretensão. Pula da janela e joga-se na cama sentindo o que resta da umidade - já quase dissipada pela janela exposta que é rasgada por pequenos raios.
Agora você anda na rua carregando uma sacola com uma bola murcha da tonalidade da sinalização. E a sacola, pendendo da sua mão como uma ramificação - ou quem sabe extensão - vai balançando e provocando ondinhas de vento que batem discretas na sua perna. Você quase se imagina saltitando pelos paralelepípedos e poças. Quando chega na borracharia, após longos minutos de espera, descobre não haver o pino pra dar vida a sua bola desmaiada, então retornas.
Um jovem que tem quase a sua idade e não mais a do seu irmão está agachado - ou conforme os tempos da infância, nas brincadeiras de pega-cocorô - o jovem estava acocorado agitando seu cigarro com uma lentidão digna de um filme em que se mostra uma esquiva. Naquele momento até você pareceu reduzir os passos e pareceu encarar o jovem que tampouco se importava com sua pertubação de reflexão. A mão parecia estar engatada numa corda ao cigarro que puxava-a magneticamente até a boca como se fosse a única coisa com metabolismo naquele sistema carne-tabaco. E então na vagarosidade de um dia de chuva, mirando algo que estava além das visões externas, mirando uma paisagem de ideias invisíveis, acocorado, o jovem deixava a fumaça sair da boca com a mesma lentidão, formando os desenhos que haviam na sua mente.
Admita que depois desse dia você tornou-se um obcecado pelo movimento da fumaça na boca de um indivíduo qualquer, até porque você retornou pra casa com sua bola extravagante (e digna de pena pelo estado inerte) observando todos os fumantes.
Porque era dia de chuva e (como dito) também era dia de fumaça. Vários corpos - todos sugados pelo tempo - levavam as mãos a boca como em uma coreografia sincronizada, levando aos céus a fumaça para que o ajudassem no dia nublado, para que então, nunca se encerrasse. Camadas e camadas de neblina misturada à fumaça para garantir o prazer de um dia de chuva. Sorrisos embaçados por fumaça.
E à noite, em seu leito, compartilhando da intimidade com você, a chuva despeja feroz seus gritos de prazer envolvendo-o em uma água febril e nem por isso menos doce. Rasgando-lhe com ventos mordazes a puxar seus cabelos para o alto e a estufar suas vestes, atacando-lhe com cinturões grossos de chuva, deixando marcas em seu rosto. Escorrendo água por dentro de suas roupas, atingindo-lhe as cuecas, escorrendo água por dentro de seu corpo.
Levante a cabeça minha menina, feche os olhos meu rapaz. E sinta a chuva açoitá-lo com ternura e beijar-lhe o pescoço arrepiado. Apagando de entre seus dedos o cigarro aceso.
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