sábado, 24 de maio de 2014

Dias felizes de chuva são dias infelizes de ampulheta

    Experimente ser engolido pelo passado e veja o quão asqueroso é estar no estômago do tempo.
    O tempo nos dias de chuva torna-se confuso. As gotas caem cada uma representando: um período do seu passado; do futuro que virou passado; e do presente que passou. Cada gota repercutindo uma vibração gigantesca na sua sustentação. Mas o abalo é forte demais pra você resistir, você desaba e o chão embaixo vira farinha. Escorregando como areia no funil, como num brinquedo de criança. 
    Então, subitamente, um vapor se forma ao seu redor, denunciando seu enclausuramento na ampulheta. Você foi totalmente engolido pelo tempo. Esse tempo concreto despeja-se sobre você como um formigamento incômodo na cabeça, e vai passando para baixo, virando um lago de areia, te afogando. Não há muito espaço pra respirar. Então a ampulheta virou de cabeça pra baixo, ou seria agora de cabeça para cima? Como saber? A ampulheta é como um círculo: sem começo, nem fim.
    A mesma areia que marcou o tempo passado agora marca o tempo presente. É a fusão abstrata que te enlouquece dentro desses vidros embaçados. Não saber a diferença entre o hoje e o ontem... essas duas palavras sequer existem mais. Também há essa nuvem negra acima da ampulheta, soltando trovoadas e fazendo a chuva chorar lá fora. Tudo o que você sente é o frio, mas nunca o contato. Sempre a lembrança, nunca a sensação. 
    A areia vai mofando em cima de você, a areia velha que marca o agora. Ou seria o outrora? E a ampulheta vai girando sempre ao avesso, marcando algo que não existe mais, fazendo pinicar esses grãos atormentadores em seu peito, enquanto a chuva se prega no vidro, estatelando-se toda, criando um som para te hipnotizar. 
    A mesma chuva que te fez sorrir um dia, hoje (hoje?) te causa dor, e um sentimento de completa inutilidade por não poder controlar as rodadas dessa ampulheta sádica. Aos poucos você vai perdendo a noção de tudo, a noção de si. Será assim, enquanto essa chuva que vomita o... passado... cair... Quem sabe depois o presente retorne ao seu ilusório equilíbrio.
    Mas em mais quantos passados ela vai se demorar? Responda enquanto gir@.

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